O futuro da apneia obstrutiva do sono: prevalência, diagnóstico e tratamento

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O futuro da apneia obstrutiva do sono: um desafio crescente

A compreensão da apneia obstrutiva do sono (AOS) percorreu um longo caminho nas últimas cinco décadas. Até a década de 1970, o termo sequer era usado na prática clínica, e o distúrbio era frequentemente subestimado, tratado como uma curiosidade rara associada a sonolência excessiva. Os primeiros estudos epidemiológicos nos anos 1990 estimavam uma prevalência em torno de 4%, ainda muito aquém da magnitude que se revelaria depois.1 No início dos anos 2000, investigações populacionais mais robustas, como o estudo epidemiológico de São Paulo (EPISONO),2 apontaram taxas acima de 30% na população adulta, ajudando a consolidar a noção de que se tratava de um problema de saúde pública de grandes proporções.1

A virada global ocorreu quando análises sistemáticas, com metodologias mais abrangentes, estimaram que cerca de 936 milhões de adultos no mundo apresentavam algum grau de AOS, sendo mais de 400 milhões em formas moderadas a graves.1; 3 Esse salto na percepção da prevalência não foi apenas fruto de critérios diagnósticos mais sensíveis, mas também de uma maior valorização dos sintomas e de sua relação com comorbidades cardiometabólicas. A AOS deixou de ser vista como um distúrbio do sono restrito a especialistas e passou a ser entendida como uma condição multifatorial com implicações profundas para a saúde sistêmica.

Essa trajetória culmina hoje em estudos de projeção capazes de antecipar o impacto futuro da doença. Um modelo de simulação prospectiva publicado em 2025 no The Lancet Respiratory Medicine projeta que, entre 2020 e 2050, a prevalência da AOS em adultos de 30 a 69 anos crescerá de 34,3% para 46,2%.4

E isto não irá acontecer por acaso. O aumento progressivo de casos de AOS decorre de mudanças profundas na nossa sociedade, como o envelhecimento populacional, a maior expectativa de vida, os hábitos de vida pouco saudáveis e a epidemia global da obesidade.4

E quando são observadas as projeções futuras da AOS separadas por gênero, o cenário se torna ainda mais desafiador. Embora os homens mantenham maior prevalência absoluta, as mulheres apresentam a curva de crescimento da doença mais acelerada. Entre 2020 e 2050, a AOS nas mulheres pode saltar de 22,8% para 37,7%, um aumento relativo de 65,4%. Nos homens, a elevação é mais moderada: de 45,6% para 54,4% (19,3% de crescimento relativo).4

Tal contraste tem explicações claras. O peso de fatores hormonais, especialmente na menopausa, acentua a vulnerabilidade feminina à obstrução das vias aéreas superiores. Além disso, há características clínicas próprias. As mulheres tendem a relatar fadiga, insônia e alterações de humor, em contraste com o ronco intenso e as apneias testemunhadas mais comuns em homens. Essa discrepância pode contribuir para subdiagnóstico em mulheres, retardando o início do tratamento e aumentando o risco de complicações.4

Mas o impacto esperado do aumento de casos de AOS vai além dos números. O aumento da prevalência está associado a maior incidência de hipertensão resistente, doenças cardiovasculares e metabólicas, bem como a declínio cognitivo, alterações de humor e até potenciais repercussões na fertilidade. Espera-se também intensificação da carga econômica, com ampliação de custos hospitalares, absenteísmo laboral e acidentes relacionados ao sono. Trata-se de um cenário em que os impactos não se limitam à esfera médica, mas se estendem à produtividade social e à sustentabilidade dos sistemas de saúde.4

No campo das intervenções, a obesidade continua a ser o principal alvo terapêutico modificável. O advento dos agonistas do GLP-1, que promovem perda de peso significativa, despertou expectativas sobre a possibilidade de reduzir também a prevalência da AOS. No entanto, embora haja melhora dos índices de apneia em pacientes que alcançam emagrecimento substancial, as projeções demonstram que o impacto populacional dessas terapias será limitado. Isso ocorre porque a apneia obstrutiva do sono é uma condição multifatorial. Além do peso corporal, a idade, a estrutura anatômica das vias aéreas e a regulação neuromuscular desempenham papéis decisivos em sua fisiopatologia.4

O futuro, portanto, exigirá abordagens mais complexas e integradas. A literatura mais recente enfatiza que a AOS não é uma entidade homogênea, mas um espectro que inclui diferentes fenótipos clínicos, desde formas posicionais até casos relacionados ao sono REM, passando pela coexistência com insônia (COMISA), doenças pulmonares (OVERLAP), entre outros.1

Esse reconhecimento abre caminho para a medicina personalizada, em que a escolha entre CPAP, dispositivos orais, intervenções cirúrgicas ou novas modalidades terapêuticas dependerá de perfis fisiológicos e clínicos específicos. Tecnologias emergentes, como inteligência artificial aplicada à polissonografia, dispositivos compactos para rastreamento domiciliar e biomarcadores moleculares, apontam para um futuro em que o diagnóstico da AOS será mais acessível e o tratamento mais direcionado.1; 4

Por outro lado, há desafios estruturais que não podem ser negligenciados. A escassez de especialistas em sono, o subdiagnóstico crônico (sobretudo em mulheres), e a fragmentação entre os diferentes níveis de cuidado ainda constituem barreiras significativas.1; 4 Modelos de atenção mais simplificados, que integrem atenção primária, especialistas e recursos digitais, são apontados como caminhos para lidar com a crescente demanda. Estratégias de triagem ampliada, monitoramento remoto e cuidado escalonado podem contribuir para reduzir a sobrecarga dos serviços e garantir acesso mais equitativo ao tratamento.5

Assim, o horizonte da AOS, projetado pelas tendências atuais, não se limita ao crescimento numérico dos casos, mas aponta para um campo em transformação, marcado pela busca de estratégias mais precisas, inclusivas e sustentáveis. Um desafio que exigirá a participação ativa de profissionais de saúde em todos os níveis de atenção.1; 4; 5

Fontes

1                      ANDERSEN, M. L.; TUFIK, S. B.; TUFIK, S. The Future of Sleep Apnea Research: From Foundational Discoveries to Personalized Medicine. Arch Bronconeumol, Jul 01 2025. ISSN 1579-2129. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/40664577 >.

2                      TUFIK, S. et al. Obstructive sleep apnea syndrome in the Sao Paulo Epidemiologic Sleep Study. Sleep Med, v. 11, n. 5, p. 441-6, May 2010. ISSN 1878-5506. Disponível em: < http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20362502 >.

3                      BENJAFIELD, A. V. et al. Estimation of the global prevalence and burden of obstructive sleep apnoea: a literature-based analysis. Lancet Respir Med, v. 7, n. 8, p. 687-698, 08 2019. ISSN 2213-2619. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/31300334 >.

4                      BOERS, E. et al. Projecting the 30-year burden of obstructive sleep apnoea in the USA: a prospective modelling study. Lancet Respir Med, Aug 26 2025. ISSN 2213-2619. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/40882656 >.

5                      PITTMAN, S. D. et al. The future of sleep apnea management: we can either ride the bus or drive it. Frontiers in Sleep, v. Volume 2 - 2023, 2024-January-12 2024. ISSN 2813-2890. Disponível em: < https://www.frontiersin.org/journals/sleep/articles/10.3389/frsle.2023.1323447 >.

 

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Citations

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