Tudo começa com um diálogo silencioso, uma via de mão dupla tão íntima quanto surpreendente. De um lado, trilhões de microrganismos em nosso intestino “sussurram” mensagens químicas que moldam a qualidade do nosso sono. Do outro, as próprias noites maldormidas, ou bem-dormidas, reorganizam esse ecossistema interno, em um ciclo contínuo que a ciência só agora começa a decifrar.
Sim, descobertas recentes apontam a existência de um eixo intestino-cérebro, onde a regulação do sono emerge como um processo complexo mediado não apenas por mecanismos neurológicos centrais, mas também por interações sistêmicas com o microbioma intestinal. Vamos entender melhor como isso funciona...
O trato gastrointestinal humano abriga um ecossistema microbiano complexo, onde dois conceitos fundamentais se complementam: a microbiota e o microbioma intestinal. A microbiota refere-se à comunidade viva de microrganismos - incluindo diversos gêneros bacterianos - que residem no intestino, formando uma rede dinâmica que interage constantemente com o hospedeiro. Já o microbioma vai além, englobando não apenas esses microrganismos, mas todo o seu potencial genético (genes, vias metabólicas etc.) e os produtos de sua atividade (como ácidos graxos de cadeia curta, vitaminas e neurotransmissores). Enquanto a microbiota representa os "habitantes" do intestino, o microbioma personifica sua "biblioteca funcional" - um sistema integrado onde informações genéticas se traduzem em efeitos fisiológicos concretos, desde a regulação imune até a modulação do eixo intestino-cérebro. Essa distinção é crucial: quando estudamos como Lactobacillus ou Bifidobacterium influenciam o sono, observamos a microbiota. E quando analisamos como os genes dessas bactérias codificam enzimas que produzem metabólitos capazes de atravessar a barreira hematoencefálica, exploramos o microbioma. Ambos os conceitos revelam, em diferentes níveis, como microrganismos invisíveis a olho nu governam aspectos surpreendentes da saúde humana.
A composição da microbiota intestinal varia significativamente entre indivíduos, sendo influenciada principalmente por fatores como dieta, estilo de vida e ambiente. No entanto, pesquisas recentes revelam que essas comunidades bacterianas também apresentam flutuações diárias sincronizadas com o ciclo sono-vigília. E mostram que a fragmentação do sono está associada ao aumento de bactérias relacionadas à inflamação e à redução daquelas que produzem substâncias anti-inflamatórias.
Por exemplo, diversas bactérias conhecidas por seus benefícios à saúde, como as produtoras de ácidos graxos de cadeia curta (Roseburia, Faecalibacterium) e as famílias de lactobacilos e bifidobactérias, exibem padrões circadianos claros em sua atividade. Quando o ciclo sono-vigília é perturbado, ocorrem alterações significativas nessa comunidade microbiana. Estudos mostram que fragmentação ou privação do sono causam um aumento na proporção de Firmicutes em relação a Bacteroidetes, o que aumenta a absorção de calorias e contribui para o surgimento de processos inflamatórios. Ocorre igualmente a diminuição de populações benéficas como Lactobacillus e Bifidobacterium, levando a um prejuízo para o metabolismo, para a imunidade e regulação do sono. Além disso, bactérias potencialmente prejudiciais à saúde, como algumas Proteobactérias patogênicas (como Escherichia e Klebsiella), se tornam mais abundantes, produzindo toxinas e lipopolissacarídeos que danificando a barreira intestinal e igualmente desencadeiam inflamação sistêmica.
Essas descobertas destacam três mecanismos principais da relação microbioma-sono: (1) as bactérias intestinais produzem substâncias que afetam diretamente o cérebro e o sono; (2) elas influenciam o sistema imunológico, que por sua vez regula o sono; e (3) os padrões de sono ajudam a determinar quais bactérias prosperam no intestino.
Dois estudos recentes — Lin et al. (2024) e Hicks et al. (2025) — mergulham nessa intrigante conexão entre o microbioma intestinal e o sono, revelando mecanismos surpreendentes e abrindo portas para terapias inovadoras.
O trabalho de Lin e colaboradores nos leva a uma jornada pelo eixo intestino-cérebro, mostrando como as bactérias que habitam nosso trato digestivo produzem substâncias capazes de influenciar diretamente o sono. Entre essas moléculas estão os ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), como butirato, propionato e acetato, que atuam como mensageiros químicos. Eles não apenas nutrem as células do intestino, mas também atravessam a barreira hematoencefálica, alcançando o cérebro e modulando a atividade de neurotransmissores como GABA e serotonina — ambos essenciais para a indução e manutenção do sono.
Além disso, certas cepas bacterianas, como Lactobacillus e Bifidobacterium, estão associadas à produção de melatonina, o hormônio que atua como modulador do ciclo sono-vigília, além de ajudar a sincronizar o ritmo circadiano do organismo. Quando a microbiota está em equilíbrio, esse sistema funciona harmoniosamente. Porém, em casos de disbiose — um desequilíbrio na composição bacteriana —, esse diálogo é prejudicado, levando a distúrbios como insônia e sono fragmentado.
Hicks e colaboradores se debruçaram sobre um problema específico: a apneia obstrutiva do sono (AOS). Longe de ser somente um distúrbio mecânico, caracterizado por interrupções repetidas na respiração durante o sono, os pesquisadores mostram que a hipóxia intermitente desencadeia uma cascata de eventos que começa no intestino e termina no cérebro. Nesse caso, os protagonistas são os exossomos — pequenas vesículas liberadas pelas células que carregam proteínas, lipídios e até material genético. Em pacientes com AOS, a microbiota intestinal alterada pela falta de oxigênio recorrente libera exossomos com substâncias tóxicas (como proteínas malformadas ou moléculas inflamatórias) que, ao chegarem ao cérebro, ativam um alarme falsos nas células de defesa. Isso gera inflamação crônica, danifica os neurônios e atrapalha a comunicação entre eles - como se fosse um "curto-circuito" no sistema. Resultado: dificuldade para formar memórias, pensar com clareza ou aprender coisas novas, algo comum em doenças como Alzheimer.
As implicações desses achados apontam para um paradigma emergente no tratamento de distúrbios do sono. Abordagens como terapia probiótica, transplante de microbiota fecal (para restaurar bactérias benéficas), bloqueio na liberação de exossomos ou intervenções dietéticas personalizadas para a modulação da microbiota intestinal surgem como estratégias promissoras. Contudo, como destacam ambos os estudos, desafios significativos permanecem, incluindo a necessidade de maior compreensão sobre as cepas bacterianas mais relevantes e o desenvolvimento de protocolos terapêuticos específicos para diferentes condições clínicas.
Mais do que tudo, essas descobertas reforçam a importância de uma abordagem integrativa no estudo e tratamento dos distúrbios do sono, incluindo o papel fundamental desempenhado pelo eixo intestino-cérebro. À medida que avançamos na compreensão desses mecanismos complexos, novas oportunidades terapêuticas emergem, destacando o potencial do microbioma intestinal como alvo para intervenções inovadoras na medicina do sono.
ResMed
A ResMed é líder global em tecnologia do sono. Nosso objetivo é fornecer às pessoas os meios para despertar o seu melhor e desfrutar de uma vida mais saudável, promovendo bons hábitos de sono e conscientizando sobre os distúrbios do sono, como a apneia do sono.
Hicks R, Gozal D, Ahmed S, Khalyfa A. Interplay between gut microbiota and exosome dynamics in sleep apnea. Sleep Med. 2025 Apr 2;131:106493. doi: 10.1016/j.sleep.2025.106493.
Lin Z, Jiang T, Chen M, Ji X, Wang Y. Gut microbiota and sleep: Interaction mechanisms and therapeutic prospects. Open Life Sci. 2024 Jul 18;19(1):20220910. doi: 10.1515/biol-2022-0910.
Stay up to date with the latest products, news, offers and tips for Sleep Apnea, Snoring, Insomnia and overall good Sleep Health.
All rights reserved.© 2020 Resmed
Post a comment