Acordar para o perigo: como a apneia do sono não tratada está por trás de milhares de acidentes

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A sonolência ao volante representa um dos fatores mais subestimados na segurança viária. Enquanto questões como embriaguez e excesso de velocidade recebem atenção prioritária, um risco silencioso - porém igualmente perigoso - permanece negligenciado: os distúrbios do sono não tratados, particularmente a apneia obstrutiva do sono (AOS).

Evidências científicas robustas demonstram que motoristas com AOS apresentam risco significativamente aumentado de acidentes graves e dimensionam com clareza a magnitude desse problema. Um estudo abrangente envolvendo milhares de acidentes fatais revelou que aproximadamente 19% desses eventos estavam diretamente relacionados a distúrbios do sono (Kalsi et al., 2018). Os dados mostraram que motoristas com apneia não tratada tinham três vezes mais probabilidade de se envolverem em colisões graves. Esses números não representam meras correlações, mas sim uma relação causal bem estabelecida: a fragmentação do sono característica da AOS compromete funções cognitivas essenciais para a direção segura, incluindo atenção sustentada, tempo de reação e capacidade de tomada de decisões.

Entre os grupos profissionais mais expostos, motoristas que permanecem longas horas ao volante merecem atenção especial. Uma investigação com motoristas de transporte urbano identificou que 27% desses profissionais apresentavam alto risco para AOS (Taşbakan et al., 2018). Esses indivíduos não apenas sofriam os efeitos debilitantes da sonolência diurna, como também relatavam maior ocorrência de situações de quase-acidente e erros de direção. Considerando a responsabilidade desses profissionais pelo transporte de passageiros, os achados destacam a urgência de protocolos de triagem específicos para essa população.

As consequências da apneia não tratada transcendem as estatísticas de acidentes. Análises econômicas detalhadas demonstraram que o tratamento com CPAP resulta em economia média de US$ 1.200 por paciente ao ano quando comparado à ausência de tratamento (Robles et al., 2023). Essa diferença decorre principalmente da redução de hospitalizações, do absenteísmo laboral e, crucialmente, da prevenção de acidentes. Os dados econômicos reforçam o que os estudos clínicos já haviam demonstrado: investir no diagnóstico e tratamento da AOS constitui não apenas uma medida de saúde individual, mas uma estratégia de saúde pública com impacto mensurável.

A literatura médica oferece evidências consistentes sobre a eficácia do tratamento. Estudos confirmam que a adesão ao CPAP pode reduzir em até 70% os episódios de sonolência diurna em pacientes com AOS (Nguyen & Trinh, 2024). Na prática clínica, essa melhora se traduz em ganhos significativos na capacidade de concentração, tempo de reação e estado de alerta ao volante - variáveis críticas para a prevenção de acidentes. O tratamento adequado da apneia, portanto, ultrapassa o âmbito da qualidade de vida individual, configurando-se como uma intervenção que beneficia tanto o paciente quanto a coletividade.

Para a comunidade médica, esses achados representam tanto um alerta quanto uma oportunidade de intervenção. A implementação de protocolos simples de rastreamento - como a aplicação sistemática do Questionário de Berlim, Stop-Bang ou da Escala de Sonolência de Epworth - pode identificar precocemente pacientes em risco, particularmente entre grupos vulneráveis como motoristas profissionais. O encaminhamento para avaliação polissonográfica e o monitoramento rigoroso da adesão terapêutica constituem etapas subsequentes essenciais.

O desafio atual reside em ampliar essa discussão para além dos consultórios médicos. Empresas de transporte, órgãos reguladores e formuladores de políticas públicas precisam reconhecer a AOS como um fator de risco modificável para acidentes de trânsito. A implantação de programas de triagem para motoristas profissionais, o desenvolvimento de campanhas educativas sobre sono e direção segura, e a inclusão da avaliação do sono em exames periódicos representam medidas com potencial para salvar milhares de vidas anualmente.

As evidências científicas deixam inequívoco que a sonolência ao volante decorrente da apneia do sono configura um problema de saúde pública prevenível. Cabe aos profissionais de saúde liderar essa discussão e transformar conhecimento em ação prática. O tratamento da AOS não se limita a melhorar a qualidade do sono; trata-se de uma medida efetiva de proteção à vida nas vias e rodovias.

ResMed

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Citations

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Purtle MW, Renner CH, McCann DA, Mallen JC, Spilman SK, Sahr SM. Driving with undiagnosed obstructive sleep apnea (OSA): High prevalence of OSA risk in drivers who experienced a motor vehicle crash. Traffic Inj Prev. 2020;21(1):38-41. doi: 10.1080/15389588.2019.1709175. Epub 2020 Jan 30. PMID: 31999487.

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Taşbakan MS et al. Evaluation of Traffic Accident Risk in In-City Bus Drivers: The Use of Berlin Questionnaire. Turk Thorac J. 2018 Apr;19(2):73-76. doi: 10.5152/TurkThoracJ.2018.17080.

3

Robles A et al. Cost-utility and budget impact analysis of CPAP therapy compared to no treatment in the management of moderate to severe obstructive sleep apnea in Colombia from a third-party payer perspective. Expert Rev Pharmacoecon Outcomes Res. 2023 Apr;23(4):399-407. doi: 10.1080/14737167.2023.2181792.

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Kalsi J et al. Sleep versus non-sleep-related fatal road accidents. Sleep Med. 2018 Nov;51:148-152. doi: 10.1016/j.sleep.2018.04.017.

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Nguyen Hai C and Trinh Duc L. Sleep Disorders and Traffic Accidents: Unveiling the Hidden Risks. Am J Case Rep. 2024 May 9;25:e943346. doi: 10.12659/AJCR.943346.

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